Teste H2D
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1. Introdução
O contexto contemporâneo revela uma sociedade que tem seus processos mediados pelas Tecnologias Digitais (TD). As TD medeiam o cotidiano, por meio da condução das relações pessoais e profissionais, no acesso à informação e como possibilidade de lazer. Esse movimento de potencialização da ação humana em ambientes virtualizados modifica a maneira de agir e de pensar dos sujeitos, o que ocasiona novas práticas sociais e diferentes modos de interação que se revelam a todo instante na cibercultura (Lévy, 1999; Lemos, 2006).
Na cibercultura, ocorre a ampliação do uso de dispositivos tecnológicos. Por isso, ela não só promove nas pessoas o desenvolvimento da capacidade de manuseio desses artefatos, mas também de aprender informações, de articular, potencializar e emergir conhecimentos novos. Além disso, a popularização do acesso e do uso cotidiano das TD produz mudanças nos próprios dispositivos, que são “enriquecidos” e “reelaborados” conforme são utilizados pelos diferentes atores em suas práticas (Borges, 2007; Rabardel, 1995).
Com as TD, ampliaram-se as possibilidades de interação em ambientes de realidade virtual, o que proporciona uma experiência interativa e imersiva por meio de imagens gráficas geradas em tempo real por consoles ou computadores, ou seja, elas permitem a imersão completa em um ambiente simulado. Nesse contexto, destacam-se os Exergames - EXG, que possibilitam a interação do movimento humano com a realidade virtual do videogame e exigem que o jogador execute movimentos que compreendam habilidades motoras e cognitivas (Vaghetti et al., 2011).
Basicamente, esse tipo de game procura envolver o jogador no esforço para desenvolver habilidades motoras durante o jogo, com foco em alguns grupos musculares (de acordo com o tipo de exercício), em vez de utilizar-se apenas de destreza manual ou habilidades motoras refinadas (com o uso de polegares, por exemplo). Essa característica coloca os EXG como uma forma de aplicar exercício físico (movimento corporal) a videogames.
Nesse sentido é que, para a Educação Física (EF), os EXG colocam novos desafios e discussões, pois incorporam o ato do movimento corporal, contrariando a ideia da passividade e da inatividade do jogador que traz como consequência o sedentarismo e a obesidade (Sothern, 2004)1. Tal possibilidade, aliada à essência criativa, interativa e lúdica dos EXG, criam novas possibilidades para os professores da EF.
Por meio da construção colaborativa dos EXG, estudantes tornam-se produtores de aprendizagens com a possibilidade de ampliarem seu conhecimento. Na interação, dão-se as aprendizagens; na participação dos actantes, o processo de (in)formação ocorre por meio das associações que promovem, valorizando o conhecimento trazido por todos e consolidando uma aprendizagem colaborativa.
A proposta, neste artigo, é apresentar o rastro desses actantes no momento de construção dos EXG, ou seja, quando se lançam no ciberespaço. O ciberespaço especifica “não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (Lévy, 2003, p. 17). Nesse espaço, os usuários se conectam com a rede, permitindo a troca de informações, a criação, a navegação do conhecimento e as formas de relação social.
2. Jogos digitais e Exergames
O jogo é uma atividade universal, anterior à própria cultura, e ocupa lugar importantíssimo nas mais diversas manifestações culturais (Neira, 2009). Como apresenta Alves (2007), o jogo esteve presente na evolução da humanidade, antes mesmo da implantação das regras e das normas de convivência comunitária. Nesse sentido, “O jogo lança sobre nós um feitiço: é fascinante, cativante.” (Huizinga, 2007, p.13). A afirmação de Huizinga nos permite entender que a verdadeira fascinação do jogo é onde reside sua própria essência. Mas o que faz o jogo ser tão fascinante? Para tentarmos responder a essa questão, partimos de uma das características defendidas pelo autor: a liberdade. Portanto, podemos sugerir que é por meio da liberdade que o jogador é tomado pela experiência e pelo poder para resolver os desafios surgidos no jogo, sendo fascinado.
Gadamer (1997) nos dá um indicativo de que essa liberdade que o jogador possui é um dos motivos que faz o jogo ser atrativo. O filósofo coloca o jogo como uma experiência capaz de apreender o jogador e o sobrepujar, afirmando que “o sujeito do jogo não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente ganha representação” (Gadamer, 1997, p.109).
Entendemos que a liberdade como característica do jogo é atrelada à temporalidade e aos espaços específicos, “quase sempre” fechados. Nesse sentido, o jogo, tanto para Gadamer (1997) quanto para Huizinga (2007), acontece em um mundo fechado, próprio e com regras específicas.
A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial. (Huizinga, 2007, p. 13)
Atraído pela liberdade de escolha, o jogador viaja em um mundo desconhecido. E essa liberdade, para Gadamer (1997), não é isenta de risco; justamente por haver o risco de não saber o que poderá acontecer, é que o jogo se torna atrativo. Pelo risco, podemos fazer um comparativo com os esportes de aventura na natureza. De maneira geral, as atividades de risco-aventura ou esportes radicais, como montanhismo, slackline, mergulho, rapel, surf, kitesurf, paraquedismo, etc., envolvem desafios consideráveis (e até extremos) às habilidades e podem gerar consequências pessoais graves (inclusive a morte) no caso de algum erro. Mesmo assim, milhares de pessoas são atraídas por essas práticas.
Portanto, nessas atividades, o risco tem um papel fundamental quanto à satisfação em viver a experiência. Nesse caso, diminuir os riscos pode ter como consequência a diminuição do desejo de participar, assim como o excesso de risco pode diminuir a satisfação ou até mesmo a desistência de participação (Marinho, 2008). O que pode fazer a experiência do risco exercida pelo jogo ainda mais atrativa é o movimento do vaivém (Gadamer, 1997), ou seja, o fato do jogo não ter qualquer alvo em que termine, mas que se renova repetidamente.
A atratividade do jogo como consequência da possibilidade da liberdade, expressa no pensamento de Gadamer (1997), pode também ser relacionada com a teoria do fluxo, proposta por Csikszentmihalyi (1999). Em suas investigações, o autor buscou respostas para os motivos pelos quais algumas pessoas “mergulham” em atividades que, muitas vezes, não têm recompensa externa; o fluxo ocorre quando o indivíduo está totalmente envolvido, imerso em uma atividade que proporciona desafio.
Porém, o autor lembra que para alcançar o estado de fluxo, é necessário que os desafios propostos sejam enfrentados em um contexto de equilíbrio entre desafios e habilidades do envolvido, no caso o jogador. Ou seja, ao adquirir mais habilidade, é possível que o jogador deseje mais desafios; já um jogador menos habilidoso, ao se deparar com mais desafios, já não seria interessante, assim como um jogador muito habilidoso com poucos desafios.
Dessa forma, os jogos digitais expressam esse contexto de que o fluxo é um cenário de desafios. De acordo com Amaro e Fragoso (2018), entre o final dos anos 70 (ano dos primeiros consoles) e início de 1990, os jogos eletrônicos passaram por transformações marcantes, como o aumento da produção, da distribuição e do consumo a partir da crescente indústria digital, alterando, assim, as formas de representação do jogo. É a partir desse cenário que Jull (2001 apud Amaro & Fragoso, 2018) identifica a terceira onda dos estudos de jogos, direcionada, principalmente, para os jogos eletrônicos. Nas palavras de Stadzisk e Miranda (2018), o jogo digital é:
atividade voluntária, com ou sem interesse material, com propósitos sérios ou não, composta por regras bem definidas e objetivos claros, capazes de envolver os(as) jogadores(as) na resolução de conflitos e que possui resultados variáveis e quantificáveis. Esta atividade deve ser gerenciada por software e executada em hardware. (p. 298)
Portanto, na cibercultura, os jogos digitais, ao permitirem criar percursos e desvendar “labirintos” nos quais os jogadores são altamente envolvidos, podem ser entendidos como espaços possibilitadores de aprendizagens. Nesses espaços, o jogador é o principal produtor do conhecimento, por meio do exercício do equilíbrio entre as habilidades adquiridas e os desafios que são colocados.
Esses jogos, com múltiplos ambientes do ciberespaço, suas características labirínticas de entrecruzamento e não linearidade, são convidativos à exploração, por meio de desafios que proporcionam um tipo de imersão/envolvimento do corpo sujeito/objeto. Nesse sentido, a partir de um novo estilo de jogar, eles colaboram para o desenvolvimento cognitivo, social e afetivo, qualificando-se como tecnologias intelectuais geradas a partir de fatores culturais, sociais, políticos e econômicos (Alves, 2007; Aranha, 2004).
Tavares (2007) considera os jogos digitais como um fenômeno social, pois, devido aos ambientes cada vez mais envolventes, apresentando efeitos, narrativas e cenários realísticos, o jogador participa de eventos diversos, o que provavelmente não seria possível em aspecto real. Como fenômeno social, consequentemente, suas finalidades foram modificadas ao longo dos anos, abandonando a simples ideia de entretenimento e passando a se expandir para áreas de reabilitação, promoção da saúde, aprendizagem, competição esportiva, entre outros.
Tal façanha ocorreu porque variou do estado de jogar e passou para o uso de mouses, teclados, controles ou joysticks à inclusão dos movimentos corporais (Baracho et al., 2012). Assim, os ”consoles de última geração trazem mecanismos que captam movimentos corporais e oferecem jogos que substituem o apertar de botões pelo balançar dos membros, pelo saltitar, pelo equilibrar-se, pelo dançar, etc.“ (Cavichiolli & Reis, 2014, p. 1084).
Formulou-se um novo jogar pela linguagem corporal dos exergames, que aliam o exercício físico ao prazer lúdico dos games (Vaghetti et al., 2016). Segundo Tore e Raiola (2012), os EXG são uma categoria dos jogos digitais em que a interação não é apenas oriunda da coordenação óculo-manual, mas também de todo o corpo. Por esse motivo, contribuem para a adoção de costumes saudáveis, estimulando um estilo de vida ativo, rompedor à ideia de passividade do participante ao jogar (Ribeiro, 2013; Kano et al., 2014).
O aspecto lúdico e o encantamento pela realidade virtual contribuem para o sucesso dos EXG (Vaghetti et al., 2016). Para Sinclair, Hingston e Masek (2007), há duas dimensões inter-relacionadas que incentivam seus bons resultados: a eficácia em termos de esforço físico, intensidade do exercício e habilidades motoras; a atratividade que arrasta o indivíduo para dentro da narrativa, ao permitir a exploração de potencialidades sem sobrecarregá-lo, na procura de soluções aos desafios impostos (Cruz, 2007; Busarello et al., 2012).
Vaghetti et al. (2019, p. 62) argumentam que a viabilidade do uso do movimento corporal “cria um ambiente favorável para o processo de ensino-aprendizagem, estabelecendo-se como potencial ferramenta didático pedagógica a ser utilizada nas instituições educativas, nas clínicas de reabilitação, nas intervenções psicopedagógicas”. Por isso, eles podem ser utilizados na EF escolar como artefato em uma prática pedagógica que se pretende emancipatória.
Na relação com os jogos digitais, funções cognitivas como memória, atenção, imaginação e criatividade são otimizadas, admitindo às crianças, aos adolescentes e aos adultos a exploração de novas formas de conhecimento. Por essa lógica, os games contribuem para o processo de internalização e na ressignificação dos signos, entusiasmando o estudante a ser mais crítico, construtivo e reflexivo, a partir da interatividade e do divertimento (Gee, 2004). Eles são, então, facilitadores das capacidades de apreensão das informações e instigadores da criatividade.
Além disso, os EXG colaboram com o aspecto psicomotor do usuário, ocasionando melhorias na coordenação motora, na lateralidade e na organização espaço-temporal (Gros, 1998). Isso ocorre porque lidam com o movimento do corpo, originando um “novo espaço-tempo, nova sala, no caso da Educação Física, outro pátio escolar, outro campo de futebol, outra quadra de esportes” (Vaghetti et al., 2012, p. 11). Portanto, ampliam as possibilidades de experimentar as mais diversas manifestações corporais da cultura do movimento construídas historicamente e as que surgem na cultura digital, beneficiando o desenvolvimento de uma EF “gamificada”.
3. Educação Física escolar e movimento corporal
A Educação Física é componente da cultura humana (Daolio, 1996). Tal área de conhecimento estuda as práticas associadas ao corpo e ao movimento produzidas pelo homem ao longo da sua história, manifestadas através dos temas/conteúdos: jogos, ginásticas, danças, esportes e lutas, derivando-se por atividades impregnadas de valores que atendem a sentidos estéticos, lúdicos, artísticos, competitivos, agonísticos e motivacionais, formando uma cultura corporal (Escobar & Taffarel, 2009).
Em uma perspectiva inclusiva e democrática, a EF tenta romper com a ideia de possibilitar um ensino pautado na padronização e normatização dos movimentos, que se limita à prática esportiva e discrimina os menos hábeis e todos aqueles que não se encaixam no cenário homogeneizante dessa prática educativa. Pauta-se por uma EF que possibilita uma visão crítica, por meio da descoberta e de vivências diversificadas que fazem parte da cultura corporal. Ela proporciona aos estudantes participarem da vida social, esportiva e cultural, para que possam se tornar sujeitos capazes de reconhecer e problematizar conceitos, usando um pensamento consciente da realidade.
Com a teoria crítica-emancipatória, Kunz (1994) estabelece que a EF na escola, para ter sentido, tem a missão de tematizar elementos da cultura do movimento, estimulando a capacidade de análise e de agir criticamente na sociedade, através de uma concepção dialógica. Para ele, é graças ao movimento que nos expomos, exploramos, comunicamos e nos construímos, interagindo de forma a (re)interpretá-los.
Sobre o movimento humano, apresentamos três importantes dimensões e suas inter-relações (Kunz & Santos, 2009). O primeiro aspecto diz respeito ao ator, que é compreendido como o sujeito que se movimenta, mostrando aos outros e a si mesmo a sua ação como diálogo, um estilo de questionar e responder por expressões e realizações motoras. Desse modo, os atores não são meros apresentadores de movimentos obtidos por repetição, treino ou reprodução de gestos técnicos; mas sim seus coautores.
A segunda perspectiva é sobre o uso de uma situação concreta para a promoção dos movimentos, uma vez que os espaços reservados para uso da EF, por si só, os influenciam. Por exemplo, as quadras poliesportivas já se relacionam com a prática esportiva. Por isso, é necessário transformar os lugares esportivos, bem como o próprio esporte. A terceira e última dimensão traz sobre os significados e sentidos que conduzem as ações e a forma como se percebe os movimentos desenvolvidos. Isso implica uma finalidade pedagógica, na qual os sentidos e os significados são gerados à medida em que são realizados, evitando-se, assim, submetê-los a contextos hegemônicos e padronizadores.
Nesse sentido, Kunz (1994) traz o termo “se-movimentar" para enfatizar que o estudante é ator dos seus movimentos, que são carregados pela sua subjetividade. O se-movimentar é entendido como manifestação individual e/ou grupal da relação entre o sujeito e a cultura, através do contato com o mundo. “O movimento não pode ser entendido como simples reação a estímulos e consequências de determinadas forças ou energias” (Kunz, 2006, p.79). Portanto, ele é mediado por uma intencionalidade e baseado nas experiências cotidianas.
Além das experiências cotidianas e da subjetividade, a linguagem é fundamental para uma educação crítica, visto que é uma importante fonte de comunicação viabilizadora da transformação ou da modificação dos comportamentos. Portanto, a EF, como uma ação comunicativa, fundamenta-se pelas competências objetiva, social e comunicativa (Kunz, 1994). A competência objetiva visa despertar a autonomia dos alunos por meio da técnica. A competência social lida com os conhecimentos e esclarecimentos que devem ser adquiridos para apreender o próprio contexto sociocultural. Por sua vez, a competência comunicativa é um processo reflexivo para incitar a compreensão crítica, mediante a linguagem verbal, escrita e corporal.
A prática pedagógica é inspirada por tais competências, mediante as categorias trabalho/objetiva, interação/social e linguagem/comunicativa (Kunz, 1994; Almeida, 2008; Almeida & Lucas, 2010). O trabalho/objetivo pode ser evidenciado em dois momentos distintos da participação discente em uma aula de EF. O primeiro acontece por intermédio dos arranjos materiais ou situações problemas, elaborados para que haja a experimentação das possibilidades de movimento sem a utilização de técnicas específicas. Nesse momento, é dada a exploração das experiências prévias do educando. Já a segunda fase dessa categoria ocorre quando certa situação pede uma tarefa/vivência que necessita o treino de uma habilidade em particular.
A interação/social existe quando todos estão ativamente comprometidos a uma vivência. Ela pode ser concretizada em pequenos grupos, em duplas ou no coletivo, mas nunca praticada individualmente, pois ninguém descobre nada sozinho. Já a linguagem/comunicativa trata da comunicação verbal, pois é nela que o aluno é capaz de explicitar seus desejos, suas ideias, seus erros e seus acertos na execução de uma tarefa/vivência, visto que:
Ensinar o aluno a falar sobre suas experiências, suas frustrações e seus sucessos, fazê-lo descrever situações e problemas, expressar e encenar movimentos de forma comunicativa e criativa é extremamente necessário para o ensino que estou propondo. O professor deve constantemente desafiar os alunos ao diálogo, deve constantemente perguntar e esperar uma resposta individual ou coletiva. Como vocês aprenderam isso? O que foi útil para que as dificuldades pudessem ser superadas? Como vocês podem me descrever isso? Como se poderia chegar a outras soluções? Essas são questões que constantemente devem surgir e desafiar os alunos. (Kunz, 1994, p. 144)
A linguagem/comunicativa estimula o pensar crítico, possibilitando uma EF escolar que jamais se reduzirá aos resultados, à sobrepujança, à competição exacerbada e ao mérito esportivo. Pelo contrário, acredita-se em uma EF atuante no processo de construção dos sujeitos através da comunicação, do respeito às suas possibilidades e entraves, tendo em vista que não existe conhecimento pronto e inabalável.
No cenário em que vivemos, o ensino escolar que requer a emancipação precisa estar atrelado às TD. Isso exige atualizações que complementam o ensino dos temas/conteúdos da EF, a fim de torná-los atrativos, instaurando novas formas de pensar, sentir, agir e interagir com o ambiente (Moita, 2007). Dessa forma, na cibercultura, estima-se romper com uma realidade pautada na repetição de conhecimentos descontextualizados, potencializando um diálogo pela linguagem comunicativa que favoreça a exploração da cultura corporal para uma geração de actantes.
4. Teoria Ator-Rede
A Teoria Ator-Rede (TAR), aporte teórico-metodológico que fundamenta este estudo, propõe um olhar capaz de agregar elementos que estão à nossa volta, atentando para a relação que os seres (humanos e não humanos) estabelecem entre si. Para a TAR, os humanos e não humanos são equivalentes, pois podem possuir o mesmo valor quando se relacionam, já que, dependendo do ângulo que observamos as associações, uns elementos podem exercer maior influência ou poder de transformação que outros.
A partir de Latour (apud Lemos, 2013), entendemos que a TAR possibilita encontrar e organizar as informações por meio do rastreamento de ações, ou seja, refazer os acontecimentos usando descrições dos rastros deixados na rede — no nosso caso, a construção colaborativa de jogos digitais. Ao rastrear essas informações sob essa perspectiva, o pesquisador se associa aos atores humanos e não humanos da rede, construindo, assim, as informações durante o processo.
Na TAR, os termos “ator”, “agente” ou “actante” são utilizados como sinônimos. Um ator é aquele que realiza uma ação e é definido de acordo com o que realiza, com sua atuação e o seu desempenho (Latour, 2001). Desse modo, Latour (2001, p. 346) explica que “em inglês, a palavra “actor” (ator) se limita a humanos, então utiliza-se muitas vezes “actant” (atuante), termo tomado da semiótica, para incluir não humanos na definição”. Nessa teoria, um ator (neste estudo utilizaremos o termo actante) pode ser formado por elementos humanos e não humanos que podem promover ações em que “humanos se comunicam”.
Já uma rede “[…] não é feita de nylon, palavras ou substâncias duráveis; ela é o traço deixado por um agente em movimento” (Latour, 2012, p. 194). Dessa forma, uma rede parte da ideia de materialidade, tendo em vista que é por meio da rede que os actantes desenvolvem suas ações (Ingold, 2008). Uma rede conecta os atores (Latour, 2012). Assim, a expressão ator-rede representa uma única entidade circulante e a impossibilidade de existência do ator sem a rede, por ambos serem essenciais (Tonelli et al., 2011).
Nesse sentido, afirma-se que não existem atores humanos na sua essência e muito menos atores não humanos; o que de fato existem são atores-rede como produto das associações entre humanos e não humanos. No contexto desta pesquisa, podemos elencar os estudantes e o pesquisador no grupo dos humanos e como não humanos os computadores, os celulares, a sala de iniciação científica (laboratório de ciências), espaços em que os estudantes realizaram a construção dos jogos e os próprios jogos digitais. Nesses momentos de interação, em que participam humanos e não humanos, ambos podem ser considerados como actantes, pois cada um transforma a ação que acontece em um dado momento e promove associações na rede.
Latour (2012), para tratar das associações, parte do termo social em latim “socius”, que designa um companheiro, um associado. A TAR percebe o social como um movimento peculiar de reassociação e reagregação. Para compreender o social a partir da perspectiva da TAR, enfatiza-se a consolidação das redes de actantes, repensando a estrutura social hierárquica ao considerar as associações entre sujeito e objeto ou humanos e não humanos. Nesse sentido, a rede se estabelece como centro das ações ou local de relacionamento e de articulação.
A TAR propõe que as associações constituem a conexão de diversos actantes em um grupo, revelando as redes de mediadores (actantes) ou os intermediários, que são aqueles que não produzem alterações na mensagem. Um mediador pode se tornar um intermediário assim como um intermediário pode se transformar em um mediador. Latour (2012, p. 65) define um intermediário como “aquilo que transporta significado ou força sem transformá-los: definir o que entra já define o que sai”. Já um mediador transforma, traduz, distorce e modifica o significado ou os elementos que veicula. Assim, para a TAR, os meios de produzir o social são considerados como mediadores que constituem o humano, tais como mídias eletrônicas, artefatos de software ou qualquer objeto técnico.
Portanto, devemos considerar a construção de jogos digitais como um contexto em que as associações entre actantes são intensas e complexas, ou seja, revelam redes de mediadores ao longo do percurso. Nesse sentido, esta pesquisa baseada na TAR favorece a identificação e a compreensão das diversas associações que se estabelecem entre os actantes na construção colaborativa dos EXG.
5. Rastros dos estudantes na criação dos EXG
Sobre as competências que podem ser desenvolvidas pelos usuários das TD, Jenkins (2006) apresenta como características: a performance (capacidade para adotar identidades alternativas com o objetivo de improvisar e descobrir); a apropriação (capacidade de relacionar significativamente conteúdos da mídia); as multitarefas (capacidade de analisar o ambiente e mudar a perspectiva, de forma a distinguir detalhes); a inteligência coletiva (capacidade de reunir conhecimento e comparar com outro em função de um objetivo comum); e a negociação (capacidade de navegar em comunidades diferentes, discernindo e respeitando perspectivas diversas, e seguindo regras alternativas).
Essas características estiveram presentes durante o processo de construção colaborativa dos EXG por parte dos alunos, nas aulas de Educação Física. No primeiro dia de construção do EXG, inicialmente, os estudantes apresentaram sugestões e ideias de como fariam o jogo, tais como o cenário, os personagens etc., concentrando-se no design do game, por meio da característica da apropriação. Para Alves e Neto (2010, p. 129), o design do game “é o processo de desenvolvimento de uma aplicação interativa, que inclui todos os aspectos relacionados ao projeto de um jogo digital”.
A construção do cenário e dos personagens constituiu-se em uma das etapas do design do game. Durante os encontros, percebemos que o grupo teve muita dificuldade na produção dos movimentos dos personagens, ou seja, na programação do jogo. Então, assim como em relação aos personagens e ao cenário, os estudantes conversaram e decidiram utilizar a internet para pesquisar tutoriais que auxiliassem na realização dessas ações. Nesse sentido, partiram da característica de multitarefa para realizar esse processo (Figure 2):
Durante os encontros para a construção dos EXG, os alunos utilizaram o Google como navegador principal do computador. O grupo iniciou utilizando a plataforma Scratch para criar os personagens e para auxiliar na caracterização estética do design foram ao buscador Google, pesquisando “personagem de desenhos animados”, na aba imagens. Nessa página, apareceram vários personagens de desenhos animados, mas, após negociação por meio da construção da inteligência coletiva, o grupo decidiu utilizar inicialmente o personagem que aparece na Figure 1.
A estética tecnológica (Santaella, 2007) se volta para o potencial que os dispositivos do jogo apresentam em relação à criação de sentidos que geram efeitos capazes de acionar a rede de percepções sensoriais dos sujeitos actantes. Essa estética esteve presente no design do EXG, pois, no processo de desenvolvimento do game, levou-se em conta sua aplicação interativa, incluindo aspectos relacionados ao projeto de um jogo digital, entre eles a interface.
Como apresenta Lévy (2010, p. 36), as interfaces correspondem a “[...] aparatos materiais que permitem a interação entre o universo da informação digital e o mundo ordinário”. Interfaces são dispositivos que garantem a comunicação (redes de interface); representam um conjunto de programas e aparelhos materiais que permitem a comunicação entre um sistema informático e usuários humanos (interface de usuário).
Além disso, a interface mantém juntas duas dimensões do devir: o movimento e a metamorfose. Ela é um agenciamento indissoluvelmente material, funcional e lógico, contribui para definir o modo de captura da informação oferecida aos atores da comunicação, condiciona a dimensão pragmática, é uma superfície de contato, tradução, articulação entre dois espaços e duas ordens de realidade diferentes: de um código para outro, do analógico para o digital, do mecânico para o humano (Lévy, 2010). Nessa perspectiva, a cibercultura traz a possibilidade de criar novas interações entre culturas individuais e coletivas no ciberespaço, por meio de interfaces.
Ao analisarem, de forma colaborativa, o design e a interface dos componentes do jogo (cenário e personagem), os estudantes perceberam que eram necessárias adaptações em relação à estrutura gráfica e visual. Então, voltaram ao Scratch e começaram a modificar os personagens escolhidos, acrescentando características que mais se aproximavam ao perfil planejado para o EXG. Logo em seguida, abriram o link do tutorial no Youtube sobre o Scratch, que haviam elaborado nos primeiros encontros, no intuito de achar algumas dicas sobre a construção do personagem.
Após assistirem uma dica do tutorial, entraram no site do Scratch (scratch.mit.edu) e abriram um jogo para verificar como foi realizada a programação do mesmo. Vale ressaltar que além do Scratch possibilitar o download da ferramenta, ele pode ser utilizado on-line, tanto para a produção de jogos como para jogar os games que são disponibilizados pelos produtores. Além disso, o usuário pode visualizar como foi realizada a programação desses jogos.
Os rastros deixados pelos alunos na rede classificam os participantes em usuários expertos (Santaella, 2004). A autora faz distinção entre os tipos de usuários que navegam a Web, conforme características de navegação, subdividindo-os em três usuários: novato, leigo e experto. Segundo Santaella (2004), o usuário novato é aquele que não tem intimidade com a rede e tudo é novidade. O usuário leigo é aquele que já sabe entrar na rede e memorizou rotas específicas, que normalmente se repetem toda vez que entra na Internet. Já o usuário experto é o que conhece a rede e navega com propriedade, sabe como buscar informações e navegar com autonomia.
Durante os encontros para a construção dos EXG, os alunos apresentaram uma cartografia complexa, compatível com usuários expertos. Eles se arriscaram no ciberespaço, embora discutissem mais sobre os personagens e o cenário e pouco falassem sobre a programação para a funcionalidade do jogo. Foram e voltaram muitas vezes ao Google tomando como ponto de partida este site de busca. Utilizaram, também, o tutorial no Youtube, tentando encontrar mais solução para a construção dos personagens e do cenário do que para a construção dos scripts (programação) do movimento deles.
Os scripts são os comandos dados aos personagens, ou seja, a programação. No Scratch, eles são construídos por meio do encaixe dos blocos. Isto quer dizer que as correções das falhas ou dos acertos podem ser feitas sem a necessidade de parar o script, promovendo, assim, um retorno imediato e possibilitando maior facilidade em repensar erros e acertos. Essa característica difere o Scratch de outras linguagens de programação, em que o retorno do comando só é obtido após o fim da sua execução.
A possibilidade de montar comandos como um quebra-cabeça torna o processo de construção e seu aperfeiçoamento uma resolução dos desafios e problemas que vão surgindo quase que naturalmente durante o processo. A reflexão sobre os resultados vai se tornando mais apurada, conforme os usuários vão se envolvendo no projeto em construção. Dessa forma, foi possível perceber que os alunos, durante o percurso da construção dos EXG, prenderam-se mais à elaboração gráfica dos personagens e do cenário do que na possibilidade de montar e remontar os scripts.
Destacamos, no entanto, que para a construção do jogo, propomos um objetivo a alcançar, mas não os passos a seguir. Assim, a busca da resolução dos desafios foi o que possibilitou a reflexão sobre os resultados durante o processo de programação, e é esse sentimento de estar envolvido em algo, de construir por si mesmo, que Papert (1994) dizia ser fundamental no processo de construção do próprio conhecimento.
O intuito do nosso estudo não foi transformar os estudantes em programadores profissionais, mas, através da programação, fazê-los compreender o funcionamento das TD e se expressar criativamente (Marinho, 2014) por uma linguagem comunicativa inerente ao EXG, proporcionando o “se-movimentar”. Quando Michel Resnick pensou no Scratch como um software de programação que fosse acessível a todos, deu aos seus usuários a liberdade de criarem e se tornarem pessoas mais ativas, ao invés de serem apenas consumidores de mídia. Com a criação de projetos no Scratch, os estudantes puderam desenvolver a fluência com as TD. Da mesma forma, foi possível aprender não só como interagir com o computador, mas criar com ele, em uma relação de actante, a partir da TAR.
Por meio do dispositivo questionário, respondido pelos estudantes individualmente ao final dos encontros, conseguimos perceber a relação entre a experiência de construção dos EXG com a EF escolar e as categorias teórico-metodológicas que fundamentaram esta pesquisa, as aprendizagens adquiridas, ou seja, (in)formação e o percurso realizado no ciberespaço. Já por meio do Voyant Tools2, foi possível realizar a interpretação do corpus das respostas dos estudantes, descrito no mapa de palavras apresentado a seguir:
O mapa indicou que os estudantes trouxeram palavras importantes no que diz respeito à relação entre os EXG e a EF, tais como: movimento(s); corporais; exercícios; saúde. O movimento é fundamental para a EF. Não é um movimento qualquer: é o movimento corporal a partir dos temas que fazem parte da construção da humanidade e passam a ser transmitidos na escola, ou seja, o movimento corporal através dos jogos, da ginástica, da dança, das lutas e dos esportes. Na concepção de Bracht (2007), a EF é uma prática de intervenção caracterizada pela intenção pedagógica a qual trata um conteúdo retirado da cultura corporal de movimento. Para o autor, o que qualifica o movimento humano é o sentido/significado do mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que o coloca no plano da cultura. Portanto, seria a cultura corporal de movimento o objeto de estudo da EF.
Desse modo, a cultura corporal é construída por meio da relação do homem com a natureza e com outros homens que se movimentam, tanto espacialmente quanto temporalmente. Assim, pelo fato do movimento humano ser uma forma de transmissão de sua cultura, ele também se torna uma forma de linguagem, expressão e comunicação. Betti (2007, p. 210) postula que “o se-movimentar é sempre uma resposta do sujeito ou uma pergunta ao mundo (às coisas e às pessoas), é nesse intervalo que se localiza a produção de signos, ou seja, a linguagem”.
Ainda sobre o mapa de palavras, vimos que surgiram os termos: aprendizado; aprendi; conhecimento; equipe; ajudando. Sobre aprendizagem ou aprendizagens, vale dizer que, na cibercultura, se aprende através da interação/interatividade que o corpo experimenta no ciberespaço. Os espaços de aprendizagens se localizam além das instituições tradicionais, como, por exemplo, a escola. Uma vez que se entende o espaço composto de características coletivas para o movimento da transformação, resta trazer, também, que o lugar é o espaço de um acontecer solidário (Santos, 2002).
As aprendizagens na cultura digital não cabem “apenas” no espaço concreto da escola (que não denominamos de espaço físico e territorial, mas de realidade off-line), por meio de um currículo “fechado” e limitado, caracterizado por relações autoritárias e pela transmissão do conhecimento. Além da escola, é possível aprender em múltiplos espaços nos quais a própria informação tem papel formador, ou seja, espaços de (in)formação. Nesse sentido, Burnham (2002, p. 295) traz que esses locais “articulam intencionalidade, processos de aprendizagens (produção imaterial de subjetividades e conhecimentos) e de trabalho (produção material e de bens e serviços)”.
Com a experiência (interações/interatividades) ocorre a construção de espaços de (in)formação e, portanto, os processos de aprendizagens, também mediados pelas TD. Sobre a experiência, há de se concordar com Larrosa (2011) quando afirma que, mesmo a experiência sendo um acontecimento exterior, o lugar onde acontece é no próprio sujeito e, portanto, no próprio corpo. Desse modo, “de fato, na experiência, o sujeito faz experiência de algo, mas, sobretudo, faz experiência de sua própria transformação. Daí que a experiência me forma e me transforma.” (Larrosa, 2011, p. 4). Assim, por meio da experiência, aprendizados significativos são construídos em espaços sujeitos à construção de lugares, já que lugar é onde se está informado, onde há informação (Santos, 2002).
6. Conclusão
Partindo desses movimentos, visualizamos que, durante a construção colaborativa dos EXG, as TD ultrapassaram o nível instrumental e criaram condições para a construção de espaços de aprendizagem que ampliam as possibilidades de interações e interatividades. Assim, em tempos e espaços dilatados, criam-se vínculos, estabelecem-se objetivos comuns e coletivamente convivemos, conectando ideias e práticas em redes, o que oportuniza o compartilhamento das aprendizagens e a construção do conhecimento por meio dos sujeitos da (in)formação.
Os sujeitos da (in)formação aprendem em múltiplos espaços socioculturais e multirreferenciais de aprendizagem, caracterizados pelos diversos loci de relacionamentos e interações sociais, contemplando também os novos contextos de relacionamento e interação que surgem com a cibercultura. A partir do rastro das associações produzidas pelos estudantes e pela análise do corpus construído com o questionário, foi possível perceber que os estudantes, que já são sujeitos de (in)formação porque consomem a informação disponibilizada no ciberespaço “espaço de (in)formação”, ao construírem colaborativamente os EXG, se tornaram sujeitos actantes-mediadores ao refletir criticamente sobre as informações adquiridas, transformando-as coletivamente em conhecimento. Para isso, foi necessário o processo de “se-movimentar”, ou seja, o elemento mediador do processo de ensino da EF escolar.
Notas
1 - Outros fatores também, a exemplo de uma alimentação inadequada, contribuem para o número de casos de obesidade em crianças e adolescentes.
2 - A Voyant-Tools é um aplicativo online que reúne um conjunto de ferramentas disponíveis para a aplicação de text analysis. Desenvolvida pelos canadenses Stéfan Sinclair (McGill University) e Geoffrey Rockwell (University of Alberta), está disponível em 10 línguas diferentes desde o seu lançamento, em 2003. Disponível em: https://www.ibpad.com.br/aula/voyant-tools-mms-4-2ed/. Acessado em: 21 jan. 2020.